[MORE DEEP TROUBLE] Confie em suas habilidades, não somente em seu caiaque

Tradução livre e comentários dos relatos do Livro Sea Kayaker's MORE DEEP TROUBLE

Título do relato original: 1. TRUST YOUR SKILLS, NOT YOUR KAYAK

Título do relato traduzido: Confie em suas habilidades, não somente em seu caiaque
Autor original: George Gronseth

Observações importantes:

- os locais deste relato podem ser consultados em http://www.charts.noaa.gov/.

- definição da palavra fetch em https://www.thoughtco.com/what-is-wind-fetch-2292990.

Relato:

Essa história deve servir como um alerta para as pessoas que acham que podem remar em caiaque oceânico com segurança mesmo sem treinar algumas formas de resgates ou testar suas habilidades e equipamentos. Os remadores deste relato aprenderam da maneira mais difícil que um caiaque "estável" pode criar um falso e perigoso senso de segurança. Não importa o quão estável um caiaque é em águas tranquilas, quando as condições são difíceis, apenas as habilidades do próprio remador poderão impedir o caiaque de virar e do próprio remador se colocar em uma situação de risco. Voltar para um caiaque cheio de água, em uma ambiente com ondas, não é tão fácil como os iniciantes podem pensar.

Era um dia de primavera parcialmente nublado, mas agradável, quando Rafael e seu amigo Carlos começaram a remar. A temperatura era de cerca de 60° F (aproximadamente 16° C), excepcionalmente quente para o noroeste dos EUA no início do mês de Abril. Eles planejaram fazer uma curta remada de um dia, sair de uma localidade chamada Greenbank, na Ilha Whidbey (Greenbank, Whidbey Island, Washington), remar para a Ilha Baby (Baby Island) e voltar. O vento soprava do sul com uma velocidade de 10 a 15 nós (18,52 km/h a 27,78 km/h). A passagem de Saratoga (Saratoga Passage), que era a leste da rota, parecia um pouco complicada, mas em um trecho mais abrigado, na entrada do porto de Holmes (Holmes Harbor), o vento sul tinha um fetch (fetch é uma medida de distância que indica quão longe o vento percorreu a água aberta. A distância que o vento viaja sobre a água antes de encontrar um obstáculo, como uma costa ou recife, é o fetch do vento. Por exemplo, se um vento soprando de leste a oeste através de um corpo de água e não há obstáculos, o fetch do vento é igual à distância leste-oeste do corpo de água) mais curto fazendo com que as ondas fossem um pouco menores. "Estávamos um pouco preocupados com as condições", disse Rafael mais tarde, "mas pensamos em sair e ver como as coisas estavam. Se fosse muito complicado, nós voltaríamos".

Carta náutica do local.

Foto da pequena Ilha Baby.

Estes dois homens estavam remando no caiaque modelo Eddyline San Juan, de Rafael (um caiaque com três cockpits, que é freqüentemente usado como um duplo, com carga no cockpit central). O caiaque tinha compartimentos estanque na proa e na popa, que ajudavam na flutuabilidade. Uma garrafa de plástico cortada servia como único equipamento de segurança para remoção de água, pois eles não tinham uma bomba de esgotamento ou qualquer outra engrenagem de emergência. Rafael tinha o caiaque oceânico há cerca de um ano; seu amigo Carlos tinha alguma experiência náutica, mas raramente tinha remado em um caiaque. Nenhum deles aprendeu nem praticou técnicas de resgates ou de reentrada.

Exemplares do caiaque Eddyline San Juan.

Ao meio dia, eles saíram de uma praia um pouco ao norte do Greenbank. Eles aproaram (pôr a proa a certo rumo) o caiaque para o vento e remaram por uma hora para alcançar a Ilha Baby. As ondas tinham cerca de 2 pés (0,6 metros) de altura, mas, uma vez que estavam aproados para elas, a travessia foi tranquila. Então eles descansaram por meia hora antes de voltar, durante o qual as condições climáticas pioraram um pouco. Pior que isso, se eles remassem diretamente de volta para onde começaram, as ondas iriam bater de través, então eles decidiram ziguezaguear para diminuir o tempo que ficariam expostos, de lado, para as ondas. Depois Rafael relatou: "Nenhum de nós estava muito preocupado. Eu acho que tinha uma falsa sensação de quão estável o meu barco era. Nunca pensei que o barco pudesse virar. Acreditava que o barco era muito confiável."

Para a primeira parte do cruzamento de retorno, eles aproaram contra o vento e tudo foi bem, mas na perna que foram a favor do vento o caiaque começou a surfar. Rafael lembrou: "Algumas das ondas nos levantaram tanto que o leme não ficava totalmente dentro da água." Perto do meio da travessia, o caiaque virou de lado para uma onda e capotamos. "Ela nos derrubou muito devagar", disse Rafael, "como se fosse em câmera lenta".

Os dois ejetaram (saíram) do caiaque mas conseguiram segurar o barco e os remos. As palavras de Rafael, "nenhum de nós ficou em pânico. Quero dizer, nós lidamos com a situação de uma maneira muito calma, em parte porque não achávamos que estivéssemos tão distantes da costa, embora na verdade estivessemos a cerca de uma milha da terra, em qualquer direção. Pensávamos que podíamos simplesmente desvirar o barco e entrar nele. Nós não percebemos o quão difícil seria." Felizmente, ambos os homens estavam em boa forma. Rafael era um ex-nadador, com bastante experiência em competições de natação no mar.

Os dois remadores realizaram um trabalho de equipe para desvirar o caiaque, semelhante ao que é feito com uma canoa aberta. Em seguida, Carlos estabilizou o caiaque enquanto Rafael subia para o cockpit da popa (traseiro). Isso ocorreu de forma tranquila, mas quando Carlos tentou entrar no cockpit da proa (da frente), o caiaque virou novamente. Nos 15 minutos seguintes, eles capotaram cerca de dez vezes enquanto tentavam voltar a entrar no caiaque. Reentrar a primeira pessoa era fácil, mas devido a falta de habilidade para realizar algum tipo de apoio, não conseguiram estabilizar o caiaque o suficiente para a segunda pessoa entrar. Rafael disse: "Em condições mais tranquilas, poderíamos ter conseguido, mas com ondas substanciais, continuamente quebrando no barco, ele ficou muito instável. Nós nunca conseguiríamos colocar a segunda pessoa no barco."

Nesse momento, as mãos e os pés de Rafael estavam ficando dormentes devido ao frio, e ele já não estava se sentindo bem. A temperatura da água estava abaixo dos 50° F (aproximadamente 10° C). Rafael estava usando uma calça, uma camisa de algodão e um corta-vento Gore-Tex. Carlos estava com um traje de mergulho curto, e se sentindo muito melhor do que Rafael. Ambos estavam usando coletes auxiliares de flutuação. Eles decidiram deixar Carlos na água, segurando na proa do caiaque, enquanto Rafael remava para a praia. Rafael esperava que aquele exercício o ajudasse a se aquecer, mas ficou com frio o tempo todo. 

Havia muita água no caiaque, devido aos capotamentos sucessivos, e isso deixou o caiaque bastante instável. No entanto, Rafael entrou e imediatamente começou a remar, em vez de usar um tempo para tentar retirar a água do cockpit. Ele remou ajoelhado, muito desconfortável, o que tornou o caiaque mais instável ainda. Estava naquela posição pois sentiu que o caiaque estava muito instável para ele se levantar e se sentar corretamente. Aparentemente, ele não conhecia nenhuma técnica de reentrada. Enquanto isso, o caiaque continuou a encher de água à medida que as ondas batiam no barco. 

Por sorte, o vento e as ondas estavam ajudando agora a empurrá-los para a praia de onde eles tinham saído. Rafael disse: "Eu apenas remei como um louco. Nós fomos indo daquele jeito por bastante tempo e chegamos a cerca de um quarto de milha da costa." A partir dessa distância, eles podiam ver as atividades na praia. Uma mulher que morava lá os viu com problemas e chamou os bombeiros. A essa altura, a condição de Carlos estava ficando bem pior. A hipotermia já estava afetando a sua fala e diminuindo a sua força. Quando estavam há apenas algumas centenas de metros da costa, Carlos disse a Rafael que ele estava tendo dificuldade em se segurar no caiaque. Rafael pensou: "Nós vamos conseguir, mas o que acontecerá se Carlos não conseguir se segurar mais?"

Quando estavam a uma centena de metros da costa, Rafael decidiu que o caiaque estava tão cheio de água que não valia mais a pena remar. Ele saiu do caiaque e puxou-o pela proa enquanto nadava em direção à costa. O pessoal do departamento de bombeiros estava vindo para ajudar, mas o barco de resgate entrou na água exatamente ao mesmo tempo em que os dois remadores chegavam a águas rasas, onde eles poderiam ficar de pé. Quando eles estavam saindo da água, Carlos perdeu a consciência momentaneamente e Rafael começou a tremer incontrolavelmente.

Eles foram levados ao hospital e tratados por hipotermia (os seres humanos são homeotérmicos por natureza, isto é, possuem a temperatura de seu organismo sempre constante, em torno de 37ºC, podendo ter pequenas variações nesse número (de 0,2ºC a 0,4ºC). Então, quando há uma queda muito drástica da temperatura corporal, é preciso ficar atento aos sintomas, pois pode ser hipotermia. Hipotermia é quando a temperatura central do corpo cai abaixo de 35ºC. É considerada como temperatura central a temperatura do coração, pulmão, encéfalo e órgãos esplâncnicos. Quando a hipotermia não é tratada rapidamente, pode haver algumas complicações, inclusive a morte). A temperatura interna de Rafael era de 92 ° F (33° C) e a de Carlos foi de 90 (32° C). Após o reaquecimento, o coração de Carlos desenvolveu uma pequena arritmia, então ele foi mantido no hospital durante a noite. Ambos logo se recuperaram completamente.

LIÇÕES APRENDIDAS PELO RAFAEL

"Agora tenho mais respeito pelas condições do mar. Estou tentando fazer alguns cursos e também comprei um par de flutuadores de remo (paddle floats) para ajudar a estabilizar o caiaque durante uma reentrada".

Exemplos de paddle floats.

ANÁLISE E LIÇÕES APRENDIDAS

Quando as condições são difíceis, no mar, os remadores despreparados podem pagar com suas vidas pela falta de cuidados. A falta de equipamento de segurança (bombas de esgotamento, flutuadores de remo, sinalizador de emergência, apitos ou outras formas de sinalizar uma emergência), bem como a fé na estabilidade do caiaque, fala por si mesmo sobre a inexperiência e a falta de conhecimento desses remadores - um elemento infelizmente comum entre muitos, senão a maioria dos acidentes de caiaque oceânicos. Esses dois homens tiveram sorte de sobreviver.

Sinalizador de emergência

Bombas de esgotamento

Mesmo tendo larguras consideráveis e serem ditos "muito estáveis", os caiaques duplos (e neste caso, um triplo) podem virar quando as ondas crescem e ficam íngremes. De fato, a reentrada é muitas vezes mais difícil de se realizar com um caiaque duplo do que com um simples, porque a maioria dos duplos têm suas plataformas mais altas do que os simples. Quanto maior a plataforma, mais difícil é escalar e menos estável é o caiaque com o peso da pessoa no convés. Além disso, dois remadores num caiaque duplo, quando não acompanhados, estão assumindo os mesmos riscos que um remador sozinho. 

Aqueles que confiam apenas na estabilidade do seu caiaque para evitar capotagens precisam entender que isso funciona apenas em condições de águas calmas. Quando o caiaque fica de lado para uma onda, as mesmas características de design que o mantém estável em água calma (estabilidade estática) tornam-se uma alavanca pela qual a onda pode virar o caiaque. Até que você tenha confiança em sua capacidade de remar nas ondas e apoiar-se com o remo para equilibrar-se no caiaque, arriscar-se mais longe da costa do que você pode nadar (uma distância muito reduzida em águas geladas) é algo bem arriscado, a menos que você esteja acompanhado por alguém mais qualificado e que você realmente confie.

Mesmo para remadores experientes, conscientemente saindo para remar em condições difíceis ou realizando travessias longas em que as condições podem mudar, as condições de segurança não devem ser analisadas levianamente, necessitando sempre uma profunda análise e reflexão sobre as questões de segurança. Questione-se sobre sua preparação (física, psicológica, técnica e de equipamentos) antes de sair. Você tem os equipamentos de segurança adequados (colete, cabo de resgate, remo reserva, flutuador de remo, etc.) e equipamento de sobrevivência (sinalizadores de emergência, rádio VHF portátil, roupas extras, etc.)?

Você já testou a flutuabilidade do seu caiaque quando ele está totalmente inundado? Você está vestido para imersão? Existem remadores experientes em seu grupo que poderiam resgatá-lo no pior caso? Então, se você optar por sair, procure maneiras de se testar em condições adversas sem correr riscos. Por exemplo, enquanto estiver perto da costa, tente remar para todos os lados, descendo e indo uma curta distância na direção do vento, depois contra o vento e também com o barco de lado para o vento. Se tudo correr bem, considere praticar algumas reentradas e rolamentos. Considere também a probabilidade das condições climáticas piorarem. Por exemplo, a corrente irá acelerar ou trocar de direção e opor-se ao vento, a amplitude de previsão da velocidade do vento excede o que você está observando atualmente, a previsão menciona as tempestades na área ou as tempestades são visíveis de longe, etc.?

Com água fria, vestir-se para imersão significa usar um Drysuit ou um Farmer John Wetsuit, de preferência feitos de neoprene de 5 mm ou mais grosso, em vez dos trajes de 3 mm comumente comercializados para praticantes de caiaques, para retardar a perda de calor e o início da hipotermia. Quando o tempo estiver ventoso, chuvoso ou frio e a água estiver muito fria para que você possa nadar, é muito improvável sentir calor vestindo um Drysuit ou um Farmer John Wetsuit. Na verdade, nessas condições, um Drysuit ou um Wetsuit podem ser necessários para o seu conforto e principalmente para prevenir a hipotermia mesmo se você não capotar. 

Exemplo de Drysuit.

 Exemplo de Farmer John Wetsuit.

Quando um kayak de fibra de vidro de duas ou três pessoas inunda, a quantidade de água que entra na área do cockpit pode ser tão grande que é cansativo bombear. Pior ainda, a flutuabilidade dos compartimentos de alguns caiaques duplos é insuficiente para manter o anel do cockpit acima da água uma vez que o caiaque está inundado. Neste caso, pode não ser possível esvaziar o caiaque enquanto estiver nele, pelo menos não em condições mais complicadas. Vale a pena conhecer e testar seu equipamento.

Para resolver o problema de flutuação em caiaques duplos, alguns destes modelos são construídos com um compartimento de flutuação central. Outra solução é adicionar um par de sea socks (sacos de nylon à prova de água colocados dentro do cockpit e grudados ao redor do anel) para reduzir consideravelmente a quantidade de água que pode entrar no caiaque. 

Exemplo de Sea socks.

Outro equipamento que é especialmente interessante para um caiaque duplo é uma bomba de esgotamento alimentada por bateria. Esta pode ser usada simultaneamente com bombas manuais ou deixada trabalhando enquanto os remadores se dirigem para a costa.

Se vocês possui um caiaque, é importante testar sua flutuabilidade quando totalmente inundado. Bombeie a água para dentro, se necessário. Teste com e sem equipamentos de acampamento, para ver se o anel do cockpit permanece acima da linha de água depois de voltar a entrar no caiaque. Também tente remar enquanto o caiaque está inundado: isso irá desenvolver e testar suas habilidades de realizar um apoio. Depois, verifique os compartimentos estanque do caiaque para ver se as divisórias (bulkheads) não estão com falhas ou vazamentos. Se o seu caiaque não tiver flutuabilidade suficiente, considere adicionar uma sea socks ou um par delas para os caiaques duplos.